Como ondas que dilaceram as pedras insistentemente, me deparei com um desconhecido ignorado desde os meus primeiros passos. Bem verdade que os pedidos incessantes e os argumentos intermináveis muito bem elaborados me invadiram por puro cansaço. E extirpando aquilo que eu chamo de falta de fé em mim mesma, contou-me sobre as aventuras da minha vida, registradas por ele desde sempre.
Como aquela vez em que mesmo que todos falassem que eu ainda era muito pequena, fiz a maior birra para aprender a nadar na piscina dos adultos porque a piscina das crianças estava muito sem graça. Quase morri afogada algumas vezes (dois segundos embaixo d’água sem conseguir colocar os pés no chão realmente parecem cinco minutos mortais), mas aprendi a nadar, participei de competições, ganhei medalhas e ouvi do desconhecido que eu teria sido uma excelente nadadora.
Também tem aquela história da bicicleta sem rodinhas que após centenas de tombos, aprendi a andar. Mas assim como a piscina de crianças ficou sem graça, a bicicleta também ficou. A bicicleta dos adultos tornou-se o meu novo desafio. Eu era tão pequena que se ficasse sentada no banco, não conseguia alcançar os pedais. Tudo bem, eu andava o dia inteiro sem sentar no banco. Como eu conseguia isso, não sei. Mas conseguia. E ouvi que com o passar dos anos, eu seria excelente em me adaptar aos obstáculos da vida. Meus joelhos marcados até hoje pelos tombos, servem para que eu nunca me esqueça disso.
Eu não lembrava, mas ele me contou sobre meu casamento aos seis anos de idade em pleno mês de julho, naquela festa conhecida como São João. Recordou a felicidade que senti ao ser escolhida para ser a noiva e como já era teimosa naquela idade, porque bati o pé e disse: quero escolher o noivo, quero me casar com o fulano. Escolhi o vestido, a maquiagem, ensaiei a cerimônia como se eu fosse uma artista de cinema e me casei, feliz e sorridente com o tal mocinho. Ouvi do desconhecido que um dia, eu seria uma esposa dessas de dar inveja.
De todas as histórias que o desconhecido insistente contou, a que eu mais gostei de escutar foi aquela em que me senti um peixinho fora d’água pela primeira vez. De todos os alunos da 2ª série, eu era a única que estava semanalmente na biblioteca escolhendo livros pra levar pra casa. E lia todos, todos mesmo. Perdi as contas de quantas fichas novas a moça da biblioteca teve que fazer pra mim. Até ganhei um livro da tal moça: Robinson Crusoé. Os livros me deixavam em êxtase, eu conseguia viajar para outros mundos. Percebi que tinha asas. E ouvi do desconhecido que por esse motivo, eu era um peixinho fora d’água. Uma peixinha de asas, das melhores.
Tentei ser desenhista, e apesar da total falta de dom pro desenho, recordei do incentivo desse desconhecido. O incentivo foi tanto, que no dia que fui comprar um novo caderno de desenhos, vi ao lado um diário azul-bebê com chave. Escutei dele que um dia, as palavras seriam minhas melhores amigas. E comecei a escrever.
Fui jogadora de vôlei, dançaria do tchan, cantora de pagode, tiete dos backstreet boys, dublê das chiquititas, a garota mais bonita entre as amigas. Subi em árvores, nos telhados dos prédios, atravessei avenidas só pra colher amoras das árvores. Pra mim, meu pai era um agente tipo o 007. O primeiro filme que assisti com as amigas no cinema foi Armagedon, e chorei. Adorava opinar sobre os filmes e o primeiro que analisei foi “A Princesinha”. Dei o meu primeiro beijo aos onze anos de idade. Tocava as campainhas e saia correndo. Comecei a enviar cartas para as pessoas que amo, fiz escova no cabelo e achei lindo, mas até hoje não consegui abandonar os cachos. Assistia malhação e me sentia super madura. Tinha uma coleção de bichinhos de pelúcia, apesar da alergia. Andava de patins o dia inteiro e ouvia que era uma excelente patinadora. Fugia pra tomar banho de chuva, fiz birra aos 12 anos pra fazer catequese e me senti orgulhosa de mim mesma no dia da primeira comunhão. Meu primeiro amor, foi platônico. Era uma negação nos esportes mas nunca neguei meu amor pelo handebol. Fui do grêmio da infantaria no colégio militar e nessa época descobri que tinha uma mente revolucionária. Não conseguia me adaptar as regras, as pequenices, as visões estreitas de mundo, estudei filosofia e decidi que se um dia tivesse uma filha, ela se chamaria Sofia. Quando optei por cursar Administração, o desconhecido me disse que era muito pouco pra mim, que alguém tão interessada pelo ser humano deveria pesquisar um pouco mais. Pesquisei até encontrar a Interpretação dos Sonhos do Freud, e naquele exato momento eu me encontrei, seria uma Psicóloga.
Ouvi tantas histórias, algumas tiradas do fundo do baú das lembranças. Como pude esquecer? Porque fechei as portas tantas vezes para este desconhecido? Eu era tão amada assim ao ponto de ter todas as histórias da minha vida registradas detalhadamente por outra pessoa?
Não contive a curiosidade.
Perguntei ao desconhecido: – Qual o seu nome?
Ele me respondeu: Amor-próprio. Incomensuravelmente feliz por você ter me deixado entrar.
Estamos juntos agora. Desde que o conheci, não o largo por nada nem ninguém neste mundo. Adaptarei os obstáculos, machucarei os joelhos, voarei com as minhas asas e seremos felizes para sempre!